O festival acontece desde 2012 na comunidade indígena Raposa I, localizada na TI Raposa Serra do Sol,  no município de Normandia, em Roraima.

 

Durante três dias (3, 4, e 5 de novembro), as tradicionais panelas de barro produzidas pelas habilidosas mãos de artesãs e artesãos do Povo Macuxi, estiveram no centro da programação do Festival da Panela de Barro, mas engana-se quem pensa que o evento se limita somente a produção e venda das panelas e outras peças feita pelos parentes que vivem em uma, das mais de trezentas comunidades da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. 

A programação proporciona uma verdadeira imersão na cultura Macuxi, com a possibilidade de vivenciar um ritual de purificação – como o da pimenta nos olhos; provar a gastronomia – com  a famosa damorida ( um caldo de carne ou ave preparado na panela de barro e cozido na brasa), participar dos cantos e rezos junto com os parentes, assistir a exposição de fotos e filmes das edições anteriores e, se houver disposição, conhecer um pouco mais das belezas naturais do território, como a Cachoeira da Raposa e o Lago Caracaranã. 

Este ano, o festival contou com apoio do Fundo Indígena da Amazônia Brasileira, por meio da chamada ‘Amazônia Indígena Resiste’. O projeto ANNA KOMANTO’ESERU – FESTIVAL DA PANELA DE BARRO, apresentado pela Associação de produtoras Indígenas Artesanal de Panelas de Barro foi um dos 32  selecionados.

O coordenador do projeto, Enoque Raposo, explica que a  proposta nasceu a partir das necessidades percebidas pelas mulheres Macuxi artesãs quanto à valorização de seu trabalho cultural e artístico. Conhecedoras e praticantes deste ofício, as mulheres sugeriram aos demais integrantes da comunidade que fossem expostos seus trabalhos (panelas de barro) e que o público interno e externo pudesse ser convidado para conhecer a arte de fazer a panela de barro e o resultado deste ofício. O festival além de fomentar a economia sustentável, revitaliza a tradição milenar do Povo Macuxi.

 ” A partir daí, foi organizada a primeira edição do festival,  com o propósito de reunir as artesãs e outras expressões artísticas, incluindo danças, cantos, teatros, além de cursos e oficinas sobre a arte de fazer as panelas. É a primeira vez, desde a criação, que recebemos apoio para viabilizar a realização do evento “, pontua o coordenador da iniciativa, Enoque Raposo.

 

Vovó do barro unindo gerações

A mestre das artesãs Joana Fidelis repassa o conhecimento para os mais jovens.  Foto: Daniela Lopes

 

Para os Macuxi, o barro tem uma simbologia mística,  e durante as oficinas de produção das panelas, a parenta Joana Fidelis – que atualmente é a mestre das artesãs – ensina que no barro vive uma entidade espiritual, conhecida como vovó do barro. Joana explica que para mexer com o barro, a pessoa precisa estar preparada, não pode estar triste, com raiva ou de luto e também, no caso de mulheres, não pode estar no período da menstruação.

“Precisa ter respeito pelo barro, na hora que tocar nele seus pensamentos têm de ser o melhor, tem que haver conexão na esfera espiritual, se não o barro quebra”, alerta a mestre que hoje transmite seus conhecimentos para outras mulheres e rapazes da aldeia.

Joana também conta que o barro a ajudou a superar uma crise de saúde, aos sessenta anos ela não faz mais uso de remédios controlados, mas aos 30 teve uma acidente vascular cerebral e precisou fazer uso de remédios por um tempo.

“O barro me ajuda muito, hoje quando vejo que estou começando a ficar mal, com ansiedade eu paro as coisas que estou fazendo e vou atrás do barro. Às vezes fico horas entretida mexendo nele e fazendo as panelas e ao final do dia, me sinto muito melhor.”, explica a artesã que fez questão de transmitir seus conhecimentos para o sobrinho, Jarilson Moreira Raposo, que hoje também é um dos jovens artesãos da comunidade.

 

Resgate dos costumes ancestrais

 

Outro costume que está desaparecendo no cotidiano dos macuxi é o uso de arco e flecha para caçar e pescar, mas  o Festival ANNA KOMANTO’ESERU  trouxe por meio do artesão, Eduardo Galvão, o resgate desses instrumentos.

 Numa das cabanas localizadas no entorno do malocão, Eduardo mostrava para os visitantes todos os processos que usa para construção dos arcos e flechas e os diferentes tipos que devem ser manuseados de acordo com o alvo ( peixes, aves e caças). 

Uma das atividades mais concorridas da programação deste ano foram as competições de arco e flecha.

“O arco e flecha pra mim está no meu sangue, desde que eu me entendo por gente eu mexo com isso, confeccionei o meu primeiro arco e flecha com quatro anos de idade. De lá pra cá eu nunca deixei esse hábito, que é uma inspiração muito grande na minha vida. Hoje com 57 anos de idade eu ainda uso pra caçar, mas a maioria das pessoas aqui da comunidade já não tem este costume.”, relatou enquanto trabalhava na confecção de mais uma peça.

Eduardo Galvão faz questão de usar os instrumentos para caçar até hoje. Foto: Daniela Lopes

Para Eduardo ver o público interessado na produção dos instrumentos durante o festival foi extremamente gratificante.

” Eu fiquei emocionado quando vi a fila de crianças querendo participar da competição de arco e flecha. Hoje na comunidade as crianças têm outros interesses, como o celular e ver aqui no festival que a criançada da comunidade e os que vieram visitar queriam entrar na competição me deixou muito feliz.”, comentou o artesão.

Outra tradição dos Macuxi que despertou atração do público, foi o ritual da pimenta nos olhos, mas este somente os mais corajosos se submeteram à experiência. O ritual da pimenta no olho ou Yenu’ Ye’Kaito’, em Macuxi, é aplicado por uma ancião e líder da comunidade para curar dores e aumentar a disposição. A medicina ancestral é feita com a espécie malagueta, mas no ritual a especiaria precisa estar verde. 

Após a retirada da pimenteira ela é consagrada e precisa passar por uma reza, que auxilia na proteção de doenças. Depois é amassada e transformada em molho, que é aplicado na linha d’água dos olhos com ajuda de um pequeno fio de corda.

Durante o festival, o ancião Lourival Fidelis da Silva aplicou a medicina, mas adverte que é preciso ter fé para que o ritual funcione.

“Quando a pimenta entra você tem de fechar os olhos e deixar as lágrimas limparem o peso. Não pode lutar contra isso e precisa ter fé para que tenha resultado.”, orienta o parente.

A pimenta nos olhos é uma medicina ancestral utilizada pelos Macuxi, Lourival Fidelis da Silva aplicou no público, durante o festival. Foto: Daniela Lopes

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Um toque de modernidade

 

Durante o festival  as tradições ancestrais convivem pacificamente com expressões artísticas da vida moderna, como o rock autoral da banda Kruviana e os vídeos laps, projeções artísticas feitas em construções por meio de um programa de computador. 

A banda kruviana é composta por jovens indígenas e fruto de um projeto do curso de graduação em Gestão Territorial Indígena, da Universidade de Roraima. O repertório é autoral e as letras falam de temas como respeito à cultura ancestral e combate ao garimpo. 

Aliás, o alerta “Fora Garimpo” também apareceu durante as projeções artísticas de vídeo laps, elaboradas por uma equipe de jovens estudantes de artes e audiovisual do Sesc de Roraima.

Vídeo Labs deram o recado da comunidade que resiste aos assédios de garimpeiros na região. Foto: Daniela Lopes

“A programação foi pensada para atrair um público de todas idades, desde crianças , passando pelos jovens até os mais velhos. É uma grande satisfação ver todo mundo da comunidade envolvido e com orgulho de mostrar, falar e viver as nossas tradições. Contar com o apoio do Podáali nesta edição nos fortalecendo para continuar realizando o festival, mesmo com  todas adversidades que enfrentamos, é muito importante. A gente sabe que pode fazer um festival maior e melhor a cada ano e que o fundo indígena é importante porque antes a nossa associação não tinha ganhado nenhum edital.”, observa o coordenador do evento Enoque Raposo.

 

 

Chamada Amazônia Indígena Resiste 

 

Lançada em dezembro de 2022 para apoiar comunidades, povos e organizações indígenas da Amazônia com projetos de pequeno porte ( custos de R$ 20.000,00 até R$ 50.000,00) a chamada recebeu propostas inseridas em 3 linhas temáticas; Gestão e proteção territorial, Economia sustentável e soberania alimentar e Fortalecimento institucional e promoção de direitos.

Foram 305 inscritos, contudo o Podáali selecionou 32 projetos, dos nove estados que compõem a Amazônia Brasileira. Estas iniciativas já estão na fase de execução, como o festival de Panelas de Barro, um dos três contemplados por Roraima nesta chamada.

Criado oficialmente em 2020, o Podáali é o primeiro fundo com gestão indígena da Amazônia brasileira. Fruto de mais de vinte anos de reflexão, colaboração e construção do Movimento Indígena da Amazônia, o Podáali simboliza uma conquista da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e de seus parceiros, na busca pela proteção, conservação territorial e da biodiversidade das terras indígenas da Amazônia.

Na língua do povo Baniwa, Podáali é sinônimo de celebração, reciprocidade e promoção da sustentabilidade. O objetivo do Fundo é fortalecer a autodeterminação, protagonismo, culturas, modos de vida dos povos indígenas e promover a gestão autônoma e sustentável dos territórios e de seus recursos naturais, visando o bem viver dos povos indígenas e de toda a humanidade.

Em 2022, com o avanço da vacinação e período em que o comportamento social atingiu o patamar mais próximo da realidade, após dois anos de pandemia de Covid-19 que resultaram em milhares de mortes e perdas irreparáveis, o Podáali lançou em dezembro o primeiro edital, cujo nome ‘Amazônia Indígena Resiste’ simboliza a luta dos povos indígenas que resistiram aos cenários mais terríveis durante a crise pandêmica. 

Em Abril deste ano, na Tenda da Coiab no Acampamento Terra Livre foram anunciados os 32 projetos selecionados pela chamada. Puderam participar do processo de seleção povos, organizações e comunidades indígenas dos 9 Estados da Amazônia brasileira (organizações indígenas como: associações, grupos de jovens, grupos de mulheres, grupos de agentes ambientais, comunicadores, dentre outros).

 

Parenta cozinhando a famosa damorida, caldo servido para visitantes e parentes durante o festival. Foto: Daniela Lopes

Festival aconteceu nos dia 3,4 e 5 de novembro de 2023 com apoio da chamada Amazônia Indígena Resiste. Foto: Daniela Lopes

Parentes expõem e vendem artesanatos durante o evento. Foto: Daniela Lopes

Banda Kruviana se apresentou na noite de sexta-feira (3). Foto: Daniela Lopes

Visitantes participam da oficina de panela de barro. Foto: Daniela Lopes

Coordenador do evento, Enoque Raposo, releve um grupo de turistas durante o festival. Foto: Daniela Lopes

Parte da equipe do Podáali prestigiou o evento. Foto: Daniela Lopes

 

 

 

 

 

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  1. Eduardo Servino Galvão 19/11/2023 at 22:45 - Reply

    Ficou ótimo a matéria,parabéns pelo trabalho de vcs e pelo apoio

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